O que dizem os
programas dos partidos para as europeias?

Confia em mim, mas não me leias

Rui Barros, Rodrigo Machado (ilustração), 21 mai 2019

Todos querem conquistar a confiança dos portugueses (ainda que com recurso a diferentes estratégias), mas os dados mostram que os programas não são escritos para ser lidos. Com a ajuda da estatística, olhamos para as 93.216 palavras que compõem os 17 projetos eleitorais dos partidos para perceber as diferenças.

Confiança. É este o principal sentimento que os partidos querem transmitir com os textos dos programas que apresentam às eleições europeias.

Dos 17 programas eleitorais com que as forças políticas se apresentam às eleições europeias de 2019, o sentimento “confiança” é o que prevalece em 15 destes manifestos políticos. Apenas o Movimento Alternativa Socialista (MAS) e o Partido Trabalhista Português (PTP) optaram por usar mais palavras que causam sentimentos de medo/ansiedade nos leitores.

Esta é a principal conclusão da análise computacional conduzida pela Renascença às 93.216 palavras que compõem todos os programas eleitorais dos partidos/coligações que vão a votos nas próximas eleições.

Comparador de Sentimentos

Escolha dois partidos e compare os sentimentos que prevalecem nos textos.

Recorrendo a uma análise estatística, a Renascença procurou identificar qual dos oito sentimentos básicos prevalece nos textos dos partidos: confiança, medo/receio, surpresa, tristeza, repulsa, ira, expectativa e alegria.

Esta análise teve por base o trabalho de Saif M. Mohammad e Peter D. Turney, que construíram uma base de dados de 14.183 palavras com os respetivos sentimentos que estas podem provocar.

A Renascença verificou quantas palavras com sentimentos associados eram usadas nos programas políticos, produzindo assim um algoritmo que afere, com algum grau de confiança, os sentimentos mais "fortes" nos textos.

A título de exemplo, a palavra "abominar" provoca, segundo estes dados, os sentimentos de ira, repulsa, e medo, ao passo que a palavra "elogio" provoca sentimentos de expectativa, felicidade e confiança. Caso uma destas palavras surja uma vez no texto de um partido, esse documento recebe "pontos de sentimento" nas três emoções identificadas.

CDS, o partido que quer muito que se confie nele

Se a confiança é o sentimento que, mesmo inconscientemente, os partidos mais querem fazer prevalecer nos seus manifestos eleitorais, ninguém consegue fazê-lo melhor do que o CDS-PP: consegue 34,47% neste indicador.

Em segundo lugar no “ranking” dos partidos que mais usam palavras que provocam confiança está a Iniciativa Liberal (32,89%), seguida do PSD (32,68%) e do PDR (31,89%).

as palavras mais usadas pelos partidos para transmitir confiança
As palavras mais usadas pelos partidos para transmitir confiança nos programas para as europeias.

O uso recorrente de palavras como economia (264 vezes), política (239), garantia (148) ou liberdade (132) justificam os valores mais altos. Tudo palavras que, de acordo com os dados dos investigadores canadianos que serviram de base para a investigação da Renascença, criam a sensação que o partido é confiável e de que se comportará da forma como promete.

Ira à esquerda, expectativa à direita

Apesar de a busca pela “confiança” dos portugueses ser uma constante entre todos os partidos, quando olhamos para o segundo sentimento mais abundante, identificam-se alguns padrões sobre as estratégias para apelar ao voto.

BE

CDU

PS

PSD

CDS

À esquerda, o discurso revela aproximações à matriz marxista para se alimentar da ira contra as injustiças. As palavras mais utilizadas pelos três partidos de esquerda com assento parlamentar associadas a este sentimento são: “combate” (78 vezes), “defesa” (68), “luta” (45 vezes) e “crise” (35 vezes). Este é o segundo sentimento mais presente nos textos elaborados por PS e CDU. No caso do Bloco de Esquerda, este é o terceiro sentimento mais identificado, tendo o programa mais palavras associadas a medo/receio.

À direita, CDS e PSD apostam mais do que a esquerda no discurso da credibilidade - os dois partidos figuram no top 3 dos programas políticos com mais palavras associadas a confiança - mas depois divergem.

O CDS envereda pela mesma linha do Bloco de Esquerda e aposta em palavras como “prejuízo” (6 vezes), “caso” (4 vezes) ou “dependência” (4 vezes) para provocar medo/receio. O PSD aposta num discurso de expectativa com recurso a palavras como “plano” (15 vezes), sucesso (6 vezes) ou visão (também 6 vezes).

Para Luís António Santos, investigador do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho, os dados revelados pela análise da Renascença apontam para uma transparência dos partidos face às suas visões da sociedade.

“É interessante perceber que os partidos mais alinhados com o tipo de organização sócio-económica em que vivemos (tendencialmente liberal, promotora da desregulação e de uma reduzida presença do Estado) sentem maior apego à manutenção do status quo e que partidos que dão a esse mesmo Estado um papel mais forte em algumas áreas de atividade e na regulação se apresentam com olhares menos optimistas, menos confiantes”, aponta o investigador na área da comunicação. "Está claro que uns gostam mais do sistema que temos e que outros querem mudá-lo”, diz.

O investigador da Universidade do Minho ressalva, no entanto, a importância de uma análise mais focada no contexto, e aponta um exemplo: “é muito discutível que, no nosso contexto atual, a palavra 'economia' possa continuar a estar associada a sentimentos de confiança”, argumenta.

No espectro oposto, o dos sentimentos menos presentes, os partidos são mais unânimes. Bloco, CDU, e CDS-PP não querem nada que os seus leitores se sintam surpresos, ao passo que PSD e PS convergem num “bloco central” contra as palavras que provocam repulsa. Dois sentimentos que, certamente, nenhum partido político gostaria que os seus leitores sentissem ao ler os seus programas eleitorais.

Por favor, não me leias

Mas mais do que feitos para que os portugueses acreditem neles, os programas para as europeias parecem ser feitos para não serem lidos.

A Renascença aplicou um teste que afere a facilidade de leitura, o Teste de Flesch, aos 17 textos. Do total de partidos a correr por um assento no Parlamento Europeu, apenas o MAS tem um programa legível o suficiente para ser compreendido por um aluno do ensino secundário.

Todos os outros partidos pontuam abaixo neste teste estatístico que usa o comprimento médio das frases e o número médio de sílabas por palavra para calcular a facilidade de leitura de um documento.

Segundo este indicador, quase 60% dos programas exigem um domínio da língua portuguesa comparável ao de um estudante universitário.

No campeonato dos textos mais difíceis de ler estão os do PAN, CDS e PS, que exigem um domínio da língua portuguesa de um licenciado.

Facilidade de leitura dos programas políticos

Resultado de cada um dos programas no teste de Flesch adaptado à língua portuguesa - um teste estatístico que mede o quão fácil é a leitura de um texto.

"A métrica de Flesch baseia-se no comprimento da palavra, no número total de palavras, no comprimento da frase e no número de sílabas", explica Luis Cavique, investigador da Universidade Aberta que aplicou este mesmo teste numa das suas investigações. "Quantas mais sílabas tiver uma palavra, mais complexa ela será. Quantas mais palavras existirem numa frase, mas complexa ela será - ou seja, será mais erudita", acrescenta o professor.

Para o investigador na área da comunicação, Luis Santos, é difícil encontrar um ponto de equilíbrio entre explicar bem e tornar o texto mais legível.

“Não é fácil encontrar o ponto certo de equilíbrio entre 'dizer o que é importante' e 'dizer de forma a que o eleitorado entenda'. Para os ditos grandes partidos o assunto é ainda mais delicado porque os eleitorados não são nada uniformes”, lembra ainda o investigador, que não deixa de sublinhar o valor baixo do partido de Governo, o Partido Socialista.

Mas afinal, de que falam eles?

Caso um português lesse todos os programas das 17 forças políticas que vão a votos a 26 de maio, precisaria de cerca de 6 horas do seu dia para terminar de ler os documentos. E aqui, talvez os números voltem a dar uma ajuda.

Se não quiser ler os textos - que a Renascença recolheu e que podem ser todos lidos aqui - pelo menos as palavras principais podem ajudar a perceber sobre o que falam.

Excluíndo as típicas palavras que, apesar de frequentes, não contribuem para a análise textual, os partidos escrevem muito “Europa”, “estados” e “Portugal”, mas também “direitos”, “desenvolvimento”, “investimento” e “trabalhadores”.

as palavras mais usadas por todos os partidos
As palavras mais usadas por todos os partidos.

E, se é dos que diz que não vai votar porque os partidos são todos iguais, saiba pelo menos que há palavras que dizem mais à esquerda e outras que dizem mais à direita.

“Habitação”, “crise” e “instituições” são palavras que só os partidos da esquerda parlamentar usam, ao passo que “cancro”, “carga” ou “natalidade” são únicas nos programas dos partidos de direita no parlamento.

as palavras mais usadas só pelos partidos à esquerda do parlamento
As palavras mais usadas só pelos partidos de esquerda (BE, CDU e PS).
as palavras mais usadas só pelos partidos à direita do parlamento
As palavras mais usadas só pelos partidos à direita (PSD e CDS).

Há ainda algumas menções honrosas: o Bloco de Esquerda leva para casa o prémio de partido mais “ palavroso” - são 12.683 palavras de programa para a Europa - e o PSD o prémio “autocentrado” - falou 66 vezes de si mesmo no seu programa político, normalmente usando a formulação “o PSD”.

Mas não há nada melhor do que tirar seis horas do seu dia para ler todos os programas e decidir que partidos quer que representem Portugal no Parlamento Europeu. Isto, claro, se conseguir.


Nota metodológica:

Este trabalho recorreu aos programas eleitorais dos 17 partidos que concorrem às eleições europeias de maio de 2019. Foram considerados como programas eleitorias os documentos assim indicados nos sites dos partidos/coligações ou, quando não disponibilizados nesses portais, os documentos entregues pelos próprios partidos à Renascença.

Quando os programas políticos estavam sob a forma de documentos não editáveis - isto é, em formato .pdf - a Renascença teve de proceder à sua transformação para ficheiros .txt. Esta conversão exigiu a consequente "limpeza" de dados, como a eliminação do texto que surgia em cabeçalho ou rodapé. Procurou-se sempre manter ao máximo a integridade dos textos dos programas políticos.

Os ficheiros considerados para a análise podem ser consultados aqui. No caso da CDU, e porque os dois partidos que compõem esta coligação apresentam cada um um documento próprio, considerou-se como programa político da CDU a junção dos dois documentos do PCP e do PEV.

Para que a análise quantitativa produzisse resultados significativos, foram eliminadas algumas palavras recorrentes na língua portuguesa que não acrescentam muito ao significado dos textos. As palavras que a Renascença não considerou podem ser consultadas aqui.

A análise de sentimento recorreu ao trabalho de Saif M. Mohammad e Peter D. Turney que, através de crowdsoursing, criaram uma base de dados com 14.183 palavras que atribui um valor booleano (1 ou 0) a um ou mais dos oito sentimentos básicos definidos na teoria de Robert Plutchik, que define oito sentimentos básicos.

Esta análise de sentimentos não toma a palavras no seu contexto frásico que, como sabemos, pode variar muito. Além disso, a classificação das palavras foi efetuada em Inglês, tendo os autores procedido depois à sua tradução. Apesar de os autores garantirem que, daquilo que puderam observar, uma grande maioria das classificações feitas "serem estáveis em várias línguas", estamos conscientes de que uma classificação do mesmo género feita por portugueses e a partir de uma lista de palavras em português seria mais eficiente. No entanto, não foi encontrada uma base de dados com essas caracterítiscas.

A lista de palavras e a respetiva classificação de Saif M. Mohammad e Peter D. Turney, do National Research Council Canada, pode ser consultada aqui.

Relativamente ao uso do teste de Flesch para avaliar a legibilidade dos documentos, importa ressalvar que este teste não interpreta o conteúdo do texto, tendo como variávies o comprimento médio das frases e o número médio de sílabas por palavra. Este teste estatístico foi desenvolvido originalmente para a língua inglesa - uma língua que tem menos sílabas por palavra. Adaptamos o teste para a língua portuguea somando 42 pontos aos valores originais do teste, à semelhança do que fizeram quatro investigadores da Universidade de São Paulo.

Todo o código e dados que estão na origem deste trabalho podem ser consultados e descarregados no Portal de Dados Abertos da Renascença.